rimar


Há momentos em que me apetece muito que os meus pensamentos rimem e, por vezes, tenho alguma dificuldade em controlar esta vontade. Observado através de uma lente psicopatológica, isto é capaz de sugerir um registo ansioso, com contornos obsessivo-compulsivos. Sentido por dentro e dito para fora, nada mais é do que uma vontade imensa de me sentir alegre. Não creio que seja, portanto, um recurso interno para gerir a angústia, uma tentativa de controlo do que está fora de mim, um mecanismo de defesa para manter o equilíbrio emocional. É, única e simplesmente, pura diversão. Gosto de rimas, gosto da melodia de algumas palavras quando cantam em conjunto com outras. Mais do que música para os ouvidos, gosto de rimas que musicam a minha cabeça. Fico bem disposta, o mundo parece-me mais colorido, os dramas mais leves, todas as coisas mais simples. A graça da desgraça. Amar sem respirar. Acreditar, ousar, saltar, confiar, voar, vibrar, regressar. A gargalhada de uma fada, no meio da criançada.  Ter, suster, cometer, entreter, fazer. Uma existência que, na sua essência, muito mais do que consciência, é sobrevivência. Imaginar, hesitar, pensar.
Um dia, fiz um registo clínico a rimar. Foi mais ou menos assim:

Doutor
por favor
tire-me esta dor.
Faço tudo o que mandar
só não tenho dinheiro para pagar.
Resta-me um pedaço de orgulho no meio deste entulho
uma nesga de dignidade e a saudade da liberdade
um cão velho
e a fotografia do casamento
que é o meu único alimento
neste tempo de alheamento
mas de bom grado lhe ofereço
tudo isto que me resta
se em troca me sarar
esta dor de continuar
fazendo de conta que é respirar
este desesperado arfar.

É claro que, em seguida, fiz o registo como deve ser, com o formato sério e técnico que é suposto. Porque nem sempre viver rima com existir. Obviamente. Infelizmente. 

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